Amsterdam, de Ian McEwan

Este livro de Ian McEwan é uma aula de escrita criativa.

80536

Já na primeira frase, o tom do que viria por acontecer ficou claramente estabelecido.

Do lado de fora da capela do crematório, dois ex-amantes de Molly Lane aguardavam dando as costas para a fria aragem de fevereiro.

Com isso, McEwan nos dá ao menos três informações importantíssimas para o romance. A primeira é que a história gira em torno de Molly Lane, uma mulher fantástica que não aparece no livro senão em lembranças. A segunda é que Molly Lane está morta; os parágrafos seguintes começam a descrever as circunstâncias de sua morte. A terceira e, na minha opinião, genial informação é que Molly Lane não tinha apenas dois amantes.

Se Molly Lane tivesse apenas dois amantes, a frase seria os dois amantes aguardavam. Não é. É apenas dois amantes, ou seja, é impreciso. Existem mais. Em uma frase, McEwan me deixou matutando sobre quem seria essa fabulosa mulher, capaz de arrebatar corações a ponto de até seus amantes (dois deles amigos entre si, como descobrimos ainda no primeiro capítulo, outro um inimigo dos amantes e do marido) estarem presentes no funeral.

McEwan também faz um excelente trabalho em posicionar os personagens e explicá-los.

Ao se virar, viu um homem moço que estava prestes a lhe tocar o ombro. Devia ter uns vinte e cinco anos, vestia um terno cinza sem sobretudo, e era careca ou tinha sido tosquiado.
“Senhor Linley, desculpe interromper seus pensamentos”, ele disse, afastando a mão.
Imaginando que se tratava de algum músico ou de alguém que viera lhe pedir um autógrafo, Clive assumiu uma expressão paciente. “Não faz mal”.

De modo sucinto, essa pequena situação, contada a partir do ponto de vista de Clive Linley, nos revela algo sobre esse personagem: ele é considerado importante e sabe disso. É considerado, uma vez que o menino pede desculpas por atrapalhar até mesmo os seus pensamentos. Se considera porque reflete que seja um iniciante querendo lhe pedir um autógrafo. Ou seja, essa é uma rotina.

McEwan poderia ter escrito que Clive era um músico famoso, mas não. No decorrer das ações e dos pensamentos, contou-nos uma das características mais importantes do personagem e do romance como um todo.

Relendo o primeiro capítulo, encontro nele as pistas necessárias para a construção de toda a trama do romance. Elas não são considerações evidentes, mas realmente pistas que, à medida que a narrativa se desenvolve, passam a fazer sentido.

De fato um inimigo. O que a atraíra? Era um sujeito de aparência estranha: cabeça grande, cabelo preto e ondulado (que era mesmo dele), tremenda palidez, lábios finos e nada sensuais. Ganhara um lugar ao sol na política com uma série banal de opiniões xenofóbicas e punitivas. A explicação de Vernon sempre fora simples: filho da puta famoso, bom de cama. Mas ela podia achar isso em qualquer lugar. Devia haver também o talento oculto que o fizera chegar aonde tinha chegado e que agora o impelia a desafiar o atual primeiro-ministro para lhe tomar o lugar.

Essa é a apresentação de um terceiro amante de Molly Lane, inimigo dos outros dois (que abrem o romance) e também do marido dela. Inimigo, opiniões xenófobas, talento oculto: tudo isso volta durante o romance, demonstrando a habilidade técnica do escritor em plantar as sementes que germinarão uma boa história.

Algo fundamental que percebi e que ajuda a construir a experiência emocional da qual falei na série de escrita criativa é: todas as personagens têm algo a perder o tempo inteiro, seja o resultado de um trabalho, uma amizade ou a vida. O risco das ações é muito alto, construindo a tensão necessária para que elas ganhem significado. Além disso, eu passei a conhecer e até a confiar nas personagens como se fossem meus amigos.

O livro Amsterdam, de Ian McEwan, é, sem a menor dúvida, uma aula a ser degustada e aproveitada com toda a calma possível.