Este texto é um registro narrativo do evento Criando seu trabalho com significado, promovido por Lella Sá no dia 20 de outubro de 2016.
Meu primeiro contato com a Lella se deu durante o Estaleiro Liberdade, o curso de empreendedorismo com foco no autoconhecimento durante o qual eu criei o Ninho de Escritores. Ela era uma das “piratas”, as pessoas responsáveis por orientar nós “marujos”, que topamos enfrentar uma jornada de transformação pessoal na busca por empreender nossos sonhos.
Desde o fim do Estaleiro Liberdade, Lella seguiu organizando seus projetos, entre eles o programa Travessia, cujo foco é auxiliar pessoas que desejam realizar a transição de carreira de uma vida sem sentido para um trabalho com significado. O workshop que acompanhei nesta quinta-feira, dia 20 de outubro, foi um gostinho do que a Lella oferece no programa Travessia.
Que sabor tem esse gostinho? De inspiração misturada com frio na barriga. Vem comigo que eu te explico.
O workshop aconteceu em uma casa próxima ao metrô Butantã. Seria uma caminhada fácil por ruas bem iluminadas e com movimento, não fosse a chuva torrencial que derrubou árvores e, com elas, o fornecimento de energia em todo o bairro. Caminhei no escuro me orientando pela luz do celular e dos faróis dos carros, desviando de galhos e troncos espalhados pelas calçadas e tentando encontrar o local do encontro. Quando cheguei, o interfone em frente ao portão parecia estar rindo de mim com sua mudez.
Entrei e achei meu caminho até uma sala à luz de velas, onde Lella havia formado um semicírculo com cerca de quinze cadeiras. “Hoje vai ser como aquele evento da Mari que você foi“, ela me disse, rindo. Lá também o desafio foi organizar uma conversa no escuro inesperado – porque quando o escuro é desejado, dá pra fazer coisas incríveis.
Aos poucos, os participantes foram chegando, cada um com sua história de caos urbano. Trânsito lento, trens parados por uma hora e meia, falta de luz, acidentes, árvores caídas. “Se fosse outro tema de workshop, acho que mais gente teria faltado”, disse uma das participantes, “mas esse mexe muito com a gente, né?”.
Lella começou o encontro nos perguntando por que estávamos lá. As respostas gravitaram em torno de insatisfações com o trabalho atual, desinteresse pelas atividades diárias, pedidos de demissão recentes ou próximos de acontecer, falta de remuneração adequada para uma vida bem aproveitada e pedido de ajuda para organizar os turbilhões de ideias sobre o que seria possível fazer.
A seguir, ela compartilhou um pouco de sua trajetória profissional e o momento em que percebeu que estava entregando sua vida a trabalhos que não faziam sentido para o mundo em que ela gostaria de viver. Enquanto morava na Tailândia, Lella foi descoberta como modelo e passou a fazer comerciais para incontáveis marcas. Ao mesmo tempo, ela estava na escola e precisava escrever uma tese para concluir os estudos. Escolheu como tema o mal que o leite faz para seres humanos. Dois meses depois, viu-se como o rosto de uma campanha de uma empresa de leite. O que ela fazia não era um trabalho com significado maior do que gerar ainda mais dinheiro para uma grande empresa. Neste momento, Lella sentiu-se incoerente.
Desse dia em diante, Lella decidiu usar suas habilidades com mais propósito e passou a estudar sobre desenvolvimento humano. Dez anos depois, elaborou a bússola interna, uma metodologia desenhada para ajudar a si mesma e aos outros na busca por trabalho com significado. Por meio da bússola, é possível refletir sobre as atitudes importantes de serem desenvolvidas e quais os elementos que as compõem.
Para introduzir a bússola interna, Lella disse: “somos CEO da empresa mais importante que há, aquela chamada vida”. Muitas vezes, porém, dedicamos nossa energia para trabalhos que fazem crescer o capital de empresas, mas que não contribuem para a construção do mundo no qual desejamos viver.
Cada ponto cardeal da bússola é composto por três elementos que, em conjunto, sinalizam uma característica importante na construção do trabalho com significado.
O norte da bússola é formado pela nossa missão (aquilo que queremos resolver no mundo), por nossos valores (do que não abrimos mão) e por nossa visão (o futuro que queremos ser e fazer). Quando entendemos a missão, a visão e os valores que nos orientam, alcançamos o autoconhecimento necessário para termos liberdade.
Os elementos que compõem o sul da bússola são as minhas necessidades (o que preciso para viver), as ocasiões em que servi com paixão (quando me senti vivo fazendo algo em que ajudei alguém) e os sonhos realizados (o que já me orgulhei de ter feito). Juntos, esses elementos me oferecem maturidade, que me permite enxergar a responsabilidade que tenho em tudo o que realizo.
No oeste da bússola, temos nossos talentos (o que faço bem e com facilidade ou quero aprender a fazer), paixões (o que me coloca em estado de fluxo) e ritmo de vida (como é minha rotina e quando funciono melhor para cada tipo de atividade). Entendendo as relações entre nossos ritmos, paixões e talentos e atuando com disciplina, somos capazes de desenvolver nossa autonomia.
O leste da bússola nos oferece uma visão sistêmica por meio da compreensão de nossas relações essenciais (o quanto eu interajo com pessoas que me ajudam a crescer), das urgências do mundo (o que me incomoda a ponto de eu querer fazer algo para mudar) e dos ambientes de interação (se os locais que frequento estão alinhados com os meus valores). Ao compreender essas questões, aprimoro meu discernimento.
O eixo vertical da bússola (norte e sul) corresponde ao nosso trabalho, enquanto o eixo horizontal (oeste e leste) trata do nosso estilo de vida.
Após ouvir a explicação da bússola, uma das participantes do workshop perguntou: “eu sinto que tenho muitas paixões e vejo muitas urgências do mundo que eu gostaria de resolver. Como escolher?”.
“Você começa pelo que já conhece, usando as habilidades que já tem”, respondeu Lella. “Basta escolher qual bandeira quer levantar agora. Pode mudar, depois, mas precisa fazer uma escolha.”
Com um encontro de poucas horas, Lella nos ajudou a perceber quais pontos em nossa bússola precisam de mais atenção enquanto buscamos um trabalho com significado. Com uma ferramenta para orientar nossa reflexão, fica mais fácil enxergar quais são os próximos passos possíveis.
Mais uma vez, percebo o quanto clareza é uma das qualidades mais importantes que podemos cultivar: clareza sobre quem somos, o que queremos, de onde viemos, para onde temos caminhado. Podemos empreender essa investigação sozinhos, disso não há dúvida, mas também podemos contar com a ajuda de pessoas que fazem do seu propósito de vida a missão de orientar outras pessoas. Nessas horas, podemos contar com a Lella 🙂