Guia para escolher livros infantis que combatem preconceitos [artigo traduzido]

(Este texto é uma tradução livre do artigo Guide for Selecting Anti-Bias Children’s Books, de Louise Derman-Sparks.)

Livros infantis continuam a ser uma fonte inestimável de informação e valores. Eles refletem as atitudes de nossa sociedade sobre diversidade, relações de poder entre diferentes grupos de pessoas e as várias identidades sociais (por exemplo, raça, etnia, gênero, classe econômica, orientação sexual e deficiência). As mensagens visuais e verbais que crianças absorvem dos livros (e outras mídias) influenciam fortemente suas ideias sobre si mesmas e sobre os outros. Dependendo da qualidade do livro, ele pode reforçar (ou abalar) o autoconceito afirmativo da criança, ensinar informação correta (ou enganosa) sobre pessoas de diversas identidades, e fomentar atitudes positivas (ou negativas) sobre diversidade. Livros infantis ensinam crianças sobre quem é importante, quem conta, quem é visível. Portanto, escolher com cuidado livros infantis é uma tarefa pedagógica indispensável na criação das crianças.

É importante oferecer às crianças uma variedade de livros sobre pessoas como elas e suas famílias – bem como sobre pessoas que são diferentes delas e de suas famílias. Todos os livros deveriam ser precisos e atraentes para crianças pequenas. Felizmente, há alguns bons livros que combatem preconceitos, que existem graças ao contínuo ativismo de muitos indivíduos e grupos ao longo dos anos. Entretanto, ainda que tenhamos mais escolhas nas últimas décadas, a falta de qualidade dos livros multiculturais para crianças sendo publicados atualmente têm frustrado muitas comunidades. O número de crianças negras nos Estados Unidos continua a aumentar, embora o número de livros publicados por e sobre pessoas negras continua o mesmo ou até mesmo diminui.

Confira as ilustrações

Procure por estereótipos. Um estereótipo é uma generalização supersimplificada sobre uma identidade específica (gênero, raça, etnia, classe, orientação sexual, habilidade/deficiência), que geralmente carrega mensagens imprecisas e depreciativas e as aplicam a TODAS as pessoas no grupo. Estereótipos desumanizam as pessoas. Portanto, também desinformam.

Infelizmente, todos nós absorvemos os estereótipos sociais predominantes sobre uma variedade de pessoas, mesmo que conscientemente não os defendamos. Para ficar alerta sobre estereótipos em livros infantis, bem como em outras mídias, é útil listar todos os estereótipos que sabemos sobre outros grupos de pessoas como uma precondição para avaliar criticamente os livros infantis. Os livros escolhidos devem mostrar pessoas compassivamente e como seres humanos. Também considere se as imagens retratam todas as pessoas como indivíduos genuínos e distintos entre si (em vez de estereotipados). Livros com estereótipos demandam que você se envolva junto à criança no desenvolvimento de pensamento crítico, mas provavelmente deveriam ser eliminados de sua coleção.

Estereótipos comuns que são danosos/perniciosos:

  • Garotas e mulheres fortes e independentes são masculinizadas.
  • Garotos e homens que adoram livros e não fazem esportes são afeminados.
  • Homens latinos falam engraçado, são preguiçosos, membros de gangues ou usam sombreiros enormes.
  • Mulheres latinas são mães da terra ou submissas.
  • Homens negros são membros de gangues, supersexualizados ou desempregados.
  • Mulheres negras são independentes demais, supersexualizadas ou mãe solteira com Bolsa Família.
  • Homens árabes ou muçulmanos são terroristas.
  • Mulheres árabes ou muçulmanas são passivas e sem voz.
  • Todos muçulmanos são árabes.
  • Índios vivem em tendas, carregam arco e flecha e estão sempre seminuas.
  • Pessoas com deficiência são dependentes ou merecem pena.
  • Pessoas LGBTQ são invisíveis ou predadores sexuais.
  • Pessoas pobres são invisíveis ou representadas como passivamente precisando de ajuda dos outros.

Atente para presença simbólica. (Nota: no original, é tokenism, na ideia de ter algo simbólico apenas para dizer que tem e não ser acusado de preconceito.) Esta é a mensagem de “apenas um”. Regularmente vendo apenas “uma” pessoa de qualquer grupo num livro ensina às crianças sobre quem importa mais ou menos. Exemplos dessa presença simbólica incluem livros com apenas uma criança negra entre várias brancas ou ter apenas um livro sobre deficiências entre diversos outros livros. A presença simbólica também se torna estereotipada. Ela permite às crianças ter apenas uma visão de um grupo de pessoas, em vez da diversidade que existe entre todos nós.

Atente para a invisibilidade. O que as crianças não veem em seus livros também as ensina sobre quem importa e quem não importa em nossa sociedade. Invisibilidade em seus livros de histórias – e livros didáticos, quando ficarem mais velhas – mina o senso de personalidade positivo das crianças e reforça noções preconceituosas sobre pessoas que não são vistas.

Exemplos de grupos de pessoas que frequentemente são invisíveis em livros infantis ou na grande mídia:

  • Famílias que vivem em zonas rurais.
  • Operários.
  • Músicos, artistas e escritores.
  • Famílias com dois pais ou duas mães.
  • Mães e pais solteiros.
  • Famílias sem moradia.
  • Famílias com mãe/pai preso.
  • Pessoas de ascendência árabe ou famílias islâmicas.
  • Crianças e adultos transgêneros.

Observe a história e as relações entre pessoas

Mesmo em um livro que mostre diversidade visual a história pode carregar preconceitos relacionados a como ele lida com as relações de poder entre pessoas de várias identidades. Os personagens homens e brancos são figuras centrais, enquanto pessoas negras ou mulheres são coadjuvantes? Para ser aceito ou receber aprovação, uma criança negra, ou menina, ou com deficiência precisa demonstrar qualidades extraordinárias ou ser aquela que entende, perdoa ou muda? As conquistas de meninas e mulheres são baseadas em sua própria iniciativa e inteligência ou devido a sua aparência ou relação com meninos e homens?

Pessoas negras, mulheres, pobres ou com deficiência são representadas precisando de ajuda ou em papéis passivos, enquanto homens brancos e capazes estão em posição de ação e liderança? Como os problemas são apresentados, concebidos e resolvidos? Quem tipicamente causa um problema e quem o resolve? Sua coleção de livros precisa de equilíbrio com diferentes pessoas no papel de “fazedores”.

Observe mensagens sobre diferentes estilos de vida

As vidas de pessoas negras ou pessoas pobres na história contrastam desfavoravelmente com a vida normativa branca de classe média? Há julgamentos de valor negativos implícitos sobre modos de vida que diferem da cultura ou classe econômica dominante (exemplo, pessoas merecem pena, ou a história é sobre uma pessoa que “escapa” desse modo menos desejável)? As imagens e informações vão além de supersimplificações e oferecem observações genuínas sobre o estilo de vida dos personagens na história? O ambiente reflete a vida atual – ou suposições passadas sobre a vida? Sua coleção de livros representa diversidade de pessoas em relação a grupos raciais/étnicos, estruturas familiares, ambientes de vida, condições socioeconômicas, tipos de trabalho e papéis de homens e mulheres na família? (Lembre-se que todo grupo racial/étnico é diverso, inclusive pessoas que se identificam como brancas).

Considere os efeitos na personalidade e identidade social das crianças

Além de olhar apenas para livros específicos, observe sua biblioteca. Seus livros reforçam ou contrariam mensagens que ensinam às crianças que devem se sentir inferiores ou superiores por causa de cor de pele, gênero, renda familiar, capacidade física ou estrutura familiar? Na escola, todas as crianças verão a si mesmas e a suas famílias representadas? Todas as crianças negras e mestiças (nota: não achei tradução bacana para mixed heritage, aceito sugestões!), meninas, vindas de variadas formações familiares, vivendo em pobreza e com deficiência encontram um ou mais personagens com os quais possam prontamente se identificar? Se eles estão visíveis em sua coleção de livros, as ilustrações e informações são precisas e respeitosas? Sua coleção é equilibrada em relação às histórias de vida de todas as crianças em seu programa? Ela também apresenta diversidade dentro dos grupos sociais a que a criança pertence (variadas formas de ser mulher ou homem, famílias com diferentes tipos de trabalho dentro de grupos raciais/étnicos). Sua coleção de livros também inclui um equilíbrio entre a diversidade dentro e além de sua sala de aula?

Em casa, sua coleção de livros reflete a diversidade entre os grupos aos quais sua família pertence? Ela tem histórias sobre pessoas como você que contribuíram para criar um mundo mais justo? Ele também inclui uma variedade de livros mostrando a diversidade para além de sua família e vizinhança?

Considere livros sobre crianças e adultos envolvidos em ações para mudança

Para desenvolver um forte senso de personalidade e a disposição em busca da cooperação e justiça, crianças precisam aprender a defender a si mesmas e aos outros quando confrontadas com injustiças. Elas também precisam aprender sobre pessoas todos os grupos de identidades sociais que têm lutado – e estão lutando – por justiça para todos. Além disso, aqui vão mais alguns itens para considerar: o enredo deve ser sobre crianças e adultos trabalhando juntos, em vez de perpetuar o mito de que mudanças acontecem por causa de indivíduos especiais que fazem tudo sozinhos. Sua coleção de livros inclui uma diversidade de pessoas que fizeram contribuições importantes para sua comunidade e para o mundo – não apenas os “heróis” tradicionalmente homens e brancos? (nota: a autora escreveu “American life as well as the world community”. Entendo que ela esteja escrevendo para estadunidenses, mas na tradução preferi ampliar o escopo porque entendo que nacionalismo é outro problema a ser enfrentado.) Alguns de seus livros sobre pessoas importantes incluem lutas por justiça? Eles mostram pessoas que eram/são pobres ou de diferentes grupos raciais/étnicos? Pessoas com deficiência estão engajadas nessas mudanças por justiça?

Considere o histórico e a perspectiva de quem escreveu e ilustrou

Todos autores escrevem a partir de um contexto cultural e pessoal. No passado, muitos livros infantis eram feitos por autores e ilustradores brancos e de classe média. Como resultado, uma única perspectiva cultural e de classe dominou a literatura infantil. Há hoje excelentes livros por pessoas negras e de variados históricos – embora nem de longe o bastante. Considere o material biográfico nas orelhas ou quarta capa dos livros. O que qualifica o autor ou ilustrador a tratar com o tema? Se o livro não é sobre pessoas ou eventos similares ao histórico do autor ou ilustrador, o que especificamente os recomenda como criadores do livro? Qual é a atitude do autor em relação aos personagens em sua história? As imagens são fidedignas e os ilustradores apresentam de forma respeitosa as personagens na história? Você tem livros refletindo uma gama de identidades e experiências diferentes entre autores e ilustradores?

Observe palavras carregadas

Uma palavra é carregada quando de qualquer forma ela rebaixa ou invisibiliza pessoas por causa de sua identidade. (nota: aqui o termo é loaded words, nesse sentido de que as palavras carregam preconceitos com elas. A autora segue com exemplos que funcionam para o inglês, mas que não se adaptam tanto ao português, por isso estou optando por não traduzir esta parte.) Exemplos de adjetivos dirigidos a pessoas negras e que carregam mensagens racistas: selvagem, primitivo, supersticioso, atrasado, traiçoeiro. Sempre considere o contexto em que uma palavra é usada e como é aplicada.

Observe a data dos direitos autorais

A data dos direitos autorais indica a data de publicação, não de escrita, que pode ser dois ou três anos antes da data dos direitos. Embora uma data de direitos autorais recente não seja garantia da relevância ou sensibilidade do livro, ela oferece informação útil. Mais livros infantis passaram a refletir a realidade de uma sociedade plural, não sexista e não capacitista nos anos 1970. Desde então, a gama de livros corretos, respeitosos e atenciosos em relação à diversidade aumentou significativamente (infelizmente, a diversidade de livros publicados nos EUA ainda não reflete a diversidade de pessoas vivendo nos EUA [nota: ou em qualquer lugar, arrisco dizer]). Quando considerar novos livros para sua coleção, comece com os publicados mais recentemente e então siga descendo a data de direitos autorais.

livros infantis

Avalie o apelo da história e das ilustrações para crianças pequenas

Embora esse guia esteja concentrado nas mensagens sobre diversidade e igualdade em livros infantis, também é importante considerar a qualidade. Certifique-se de que o livro será uma boa leitura. Se as crianças acharem a história ou ilustrações chatas, o livro não vai prender sua atenção, mesmo que o livro atenta a algum tipo específico de diversidade que você deseja mostrar. Procure por histórias ativas e interessantes em que diferentes tipos de pessoas são essenciais para as pessoas da história, não o tópico principal. Por exemplo, em A chair for my mother, uma criança tenta guardar dinheiro para conseguir uma cadeira confortável para sua mãe garçonete. Ainda que o livro mostre uma mãe solteira, da classe trabalhadora, e uma garota engenhosa, ele não é didático. Também observe se as ilustrações são coloridas e identificáveis para crianças. Embora gostem de variados estilos, ilustrações abstratas demais podem não prendem sua atenção.

Observe a adequação de idade. Muitas livrarias apontam qualquer livro de figuras como apropriado para crianças pequenas, mesmo que a história seja do nível de crianças da primeira série. Às vezes um livro para crianças mais velhas funcionará se você simplificar a história ou “contar” a história em vez de lê-la. Em alguns casos, este é o único jeito de conseguir livros que apresentem grupos específicos de crianças (por exemplo, histórias com crianças cambojanas ou com dificuldades de aprendizagem). Alguns pontos adicionais a considerar:

  • Muitos livros infantis usam personagens animais em vez de pessoas e há alguns livros excelentes que exploram diversidade com personagens animais (exemplo: And Tango Makes Three e A Coyote Solstice Tale). Crianças gostam deles. Entretanto, tais livros não são substitutos para explorar questões de diversidade e contra desigualdade com pessoas como personagens principais.
  • Alguns professores de crianças se perguntam se é necessário que todos os livros na sua coleção mostrem diversidade. Todos os livros devem ser corretos, atenciosos e respeitosos. Contudo, você desejará livros específicos sobre determinados tipos de pessoa (por exemplo, famílias com diversas etnias ou com crianças adotadas). Diversidade se torna essencial na harmonia de sua coleção de livros, onde você quer evitar invisibilidades e presenças simbólicas de qualquer grupo.
  • Contos populares e de fadas têm sido uma forma dominante de literatura infantil. Nas culturas de onde vieram, eles eram usados para ensinar lições e valores importantes relacionados à cultura de origem. Crianças os adoram em suas versões originais – não nas adaptações comercialmente higienizadas. Contudo, contos populares e de fadas também carregam sexismos, classismos e racismos e devem ser usados com cuidado enquanto se introduz à criança a valores sobre diversidade, igualde e combate a preconceitos.
  • Uso excessivo de contos populares para “ensinar” sobre um grupo étnico/cultural específico leva à desinformação e confusão. Eles são sobre animais e ocasionalmente pessoas de um passado mítico e foram criados para ensinar os valores centrais da cultura de origem. Eles não são sobre as pessoas que vivem nas sociedades contemporâneas – e isso é algo que as crianças precisam entender. Informação e imagens sobre como as pessoas realmente vivem hoje em dia permite que as crianças se conectem com pessoas que vêm de diferentes culturas ao mesmo tempo em que combate estereótipos já absorvidos (por exemplo, como índios realmente vivem).
  • Por fim, há a questão sensível de o que fazer dos livros infantis “clássicos” ou “amados”. Muitos deles são maravilhosos como literatura infantil, mas infelizmente costumam carregar valores de sexismo, racismo, capacitismo e mesmo colonialismo. Pessoas que amam os livros que apresentam esse dilema argumentam que está tudo bem em utilizá-los porque são reflexo de seu tempo, o que sugere que seria o bastante para justificar as mensagens preconceituosas. Por exemplo, eu adorei a série de livros de Babar quando criança e fiquei desagradavelmente chocada ao perceber, já adulta, o quanto das imagens e histórias refletiam o colonialismo europeu na África. Eu escolho não os utilizar com minhas crianças, querendo que aprendam informações corretas sobre como as pessoas na África realmente vivem. Não compartilhar os livros favoritos pode entristecer algumas pessoas, mas é muito melhor do que o dano causado ao reforçar mensagens de racismo e colonialismo.

Em resumo, conforme você escolhe livros ou examina criticamente a sua coleção atual, sempre tenha em mente o poder que os livros, com suas palavras e imagens, têm de nutrir ou prejudicar o senso de si de uma criança, suas atitudes positivas em relação aos outros e a motivação de agir em prol de justiça.