Eu jogo RPG há quase vinte anos, e com esse tempo veio muita experiência (tempo e experiência não são sinônimos, mas isso é tópico para outro texto). Jogando neste final de semana, passei por uma situação que me exigiu improviso e me ajudou a entender na prática alguns ensinamentos recentes que recebi sobre a arte de improvisar. Este texto é sobre isso: o que o RPG me ensina a respeito da criação de narrativas instigantes e onde entra o improviso quando compartilhamos o controle das nossas invenções.
RPG, para quem não conhece, é Roleplaying Game, um jogo em que pessoas se reúnem para cocriar uma história. Diferente de um faz de conta, no RPG temos papéis e regras predefinidos. De início, existem dois papéis fundamentais: o narrador e os jogadores. Cada mesa (um outro jeito de dizer “grupo”) costuma ter um narrador e vários jogadores. O narrador é responsável por apresentar e dirigir o mundo inteiro, os personagens que o habitam, os desafios etc. Cada jogador, por sua vez, assume um personagem específico (ou mais, em alguns casos) e o interpreta, vivenciando na pele deste personagem os desafios e eventos propostos pelo narrador.
Quanto às regras, cada jogo de RPG possui um sistema de regras que vai dar orientação para o que cada personagem pode fazer. Em cenários de fantasia medieval – baseados, em geral, em O Senhor dos Anéis –, por exemplo, as regras vão explicar como feiticeiros usam suas magias e guerreiros lidam com suas espadas. Os jogadores precisam seguir as regras, é a limitação à criatividade que dá o sabor de desafio ao jogo. O narrador, por sua vez, tem uma regra extra ao alcance da mão: a regra de ouro, que diz que sua palavra está acima de qualquer outra regra. A função da regra de ouro é garantir que o jogo flua bem e divertido para todos – pois esse é o trabalho do narrador, garantir a diversão do grupo.
Prefiro ser narrador porque me dá muito mais prazer inventar situações para que os demais jogadores resolvam do que efetivamente resolvê-las na pele de um personagem. Isso provavelmente explica por que eu trabalho orientando escritores e não interpretando em um palco.
Como narrador, então, meu trabalho é propor uma história a ser vivida pelos jogadores. Meu desafio durante cada sessão de jogo é engajar os jogadores numa fantasia e fazer com que eles sintam o que seus personagens sentiriam, que eles estejam tão dentro do jogo que o mundo lá fora deixa de ser importante naquele momento. Meu trabalho ao jogar RPG, enquanto narrador, é colocar os jogadores em estado de fluxo.
Ser narrador em uma partida de RPG, portanto, equivale a escrever uma história. Os objetivos são os mesmos.
No lugar de escrever, porém, estou propondo situações que serão vividas por personagens que não estão sob meu controle, e é aqui que o desafio e o improviso começam.
Como narrador (e escritor), tenho o poder necessário para que qualquer situação seja resolvida da forma que eu bem entender. A regra de ouro vale para o RPG e para a literatura.Quando escrevo, não vejo a experiência do leitor. No máximo, fico sabendo dela via mensagens e conversas posteriores, já distantes, já filtradas. Ao jogar RPG, porém, tenho em minha frente um grupo de pessoas que já está vivendo aquela história e cuja reação à história é imediata. Eu sei na hora se a história está sendo bem vivida ou não.
Do RPG eu tirei a principal lição que hoje levo para meus aprendizes no Ninho de Escritores: a pessoa mais importante em uma história é o leitor (ou o ouvinte, ou o jogador). Posso escrever para mim, propor apenas situações e cenas que me encantem, mas isso não quer dizer que os leitores e jogadores vão tirar proveito daquilo. Não é à toa que sempre sugiro que se defina para quem estamos escrevendo.
Mas cadê o improviso?
Na sessão de RPG desta semana, eu havia planejado algumas situações para serem vividas pelos jogadores. Uma delas envolvia um NPC (Non-Player Character, um personagem controlado pelo narrador, ou seja, por mim) roubando um artefato que estava em posse do grupo. Na minha cabeça, o artefato seria roubado e fim, azar do grupo. Pensei em todo o evento do roubo, o modo como ele apareceria dentro da narrativa e assim o fiz. Enquanto ia acontecendo, os jogadores foram vivendo o drama de ter um item importante roubado e foram acompanhando na história todas as sensações que eu havia planejado… Até que chegou a hora de decidir o próximo passo.
Na minha ingenuidade de criador de histórias autocentrado, pensei que não havia escolha, então os jogadores precisariam dar de ombros e seguir adiante com os demais fios de histórias que estavam vivenciando. Seria assim se eu estivesse escrevendo uma história de minha autoria. Entretanto, eu não estava escrevendo uma história e sim propondo um jogo para um grupo de pessoas e personagens com vontades próprias.
Eles decidiram que não sairiam do lugar enquanto não encontrassem pistas sobre o paradeiro do artefato roubado.
Eu poderia, com meu poder de narrador, frustrá-los e bloquear todas as tentativas. Ninguém viu o ladrão, ninguém sabe sobre ele, nenhuma informação curiosa chegou até os ouvidos certos. É fácil assim usar o poder de narrador para encerrar uma história, basta colocar um ponto final. Olhei o relógio e ainda faltava uma hora e meia para o final da sessão. Pelo jeito que os jogadores estavam agindo, eu sabia que aquela noite só terminaria bem se a história não fosse interrompida. Diferente da vida, narrativas precisam fazer sentido, precisam de uma proposta de continuidade.
Foi quando decidi improvisar.
Improvisar é abrir mão do controle e dividi-lo com um coletivo, é se permitir transitar por caminhos que não eram os planejados. O improviso pode ser delicioso, mas também pode dar um medo danado. Quem me lê sabe que sou uma pessoa dada a medos desnecessários – nem por isso menos aterrorizantes.
Lá estava eu, com um grupo ansiando por uma pista, um sentido para o que havia acontecido na história. Eu não podia simplesmente dizer “calma, daqui a algumas sessões, talvez até na próxima, a criatura que roubou o artefato voltará e será um vilão incrível que passei semanas criando”. Certamente essa era a ideia que eu tinha, mas de que adianta dizer? De que adianta contar? Histórias são coisas que a gente vive, não coisas que a gente quer saber como se constroem.
Assim, aceitei o desafio e lancei uma pista. Os personagens dos jogadores encontraram o ladrão e a situação estava dada para se resolver em um combate rápido – em jogos de RPG, combates costumam ser uma solução padrão para os conflitos. Eu queria mais do que aquilo, mais do que um roubo bem orquestrado e narrado seguido de uma resolução simplória na ponta da espada. Por meio do personagem que roubou o artefato, propus um dilema para o grupo, uma situação que não poderia ser resolvida por combate – porque o ladrão não estava disposto a lutar, e sim a conversar, o que transformaria combate em assassinato.
Os jogadores, por meio de seus personagens, precisaram encontrar uma solução para um dilema, uma situação sem soluções. Eles precisaram decidir se confiariam no ladrão e sua aparente redenção ou se arriscariam a vida dele caso ele viesse a ser punido pela falha em roubar (e manter consigo) o artefato.
O que, exatamente, o grupo decidiu é irrelevante para este texto. O importante aqui é o desafio do improviso. De um minuto para o outro precisei acessar meu repertório de situações possíveis e interessantes e jogar fora o que havia planejado, em busca da melhor solução narrativa para a história.
A melhor solução narrativa não é aquela que vai me agradar mais, mas si aquela que servirá melhor à experiência coletiva do grupo.
Eis uma lição de escrita, de jogo, de contação de história e, a bem da verdade, de vida.