Este texto é um registro narrativo do Creative Mornings de outubro, cujo tema foi Transparência (Transparency) e a palestrante convidada foi Jules de Faria. O Creative Mornings é uma série de encontros com café da manhã para pessoas criativas se encontrarem e discutirem temas interessantes. Os encontros acontecem em mais de cem cidades ao redor do mundo, todas com o mesmo tema. Desde abril, ofereço como voluntário o meu serviço de registro narrativo, colhendo as experiências e aprendizagens para transformá-las em histórias.
Os encontros do Creative Mornings têm transitado por diversos espaços criativos e inspiradores em São Paulo. Em outubro foi a vez da agência Garage oferecer espaço e abrir suas portas em uma grande sala sem divisórias senão uma parede de vidro para a cozinha. Localizada no décimo andar de um prédio na Vila Olímpia, a Garage é uma agência digital cujo propósito é acelerar mudanças através da comunicação.
Um dos projetos em que esse propósito fica visível é o Signs of no age, que busca confrontar as limitações sociais que impomos para pessoas com mais de sessenta anos. Duas ações se destacam neste projeto: o uso de tatuagens como marca de resistência à ideia de velhice como fim do potencial de estar vivo e a troca do símbolo usualmente associado aos idosos, aquele do velhinho alquebrado sustentando por uma bengala.
Após a apresentação da Garage, chegou o momento de Cris Romagna convidar o público a sentir uma canção. Desde julho, Cris brinda os participantes do Creative Mornings com músicas criadas a partir do tema de cada mês. Com delicadeza em forma de melodia, ele cantou: “transparency is about respect (…) it’s time to open the mind” (transparência é sobre respeito, é hora de abrir a mente).
Com este convite, a palestrante de outubro Jules de Faria foi chamada para falar. De início, já deixou claro que estava lá para falar de transparência, mas na verdade trataria sobre feminismo – especificamente a respeito da relação entre gênero e comunicação. Enquanto apresentava seus projetos, Jules tratou de enfatizar a importância de termos conhecimento e acesso a palavras e histórias que nos informem sobre as violências e assédios sofridos.
Em vez de se referir a mulheres, negros, homossexuais etc. como minorias, ela indicou o termo grupos minorizados. Afinal, o que está em questão não é a quantidade de pessoas, mas sim o modo como são tratados em termos de acesso a direitos e proteção contra opressões.
Como jornalista, Jules trabalhou no chamado “jornalismo feminino”, que tipicamente engloba temas como beleza, casa, decoração, moda e até mesmo horóscopo. Ou seja, um jornalismo que não parece preocupado com temas políticos e sociais.
O desgosto com esse modelo ganhou força após uma matéria do Pânico em que Gerald Thomas enfiou a mão por dentro da saia de Nicole Bahls. Jules propôs uma pauta sobre assédio para sua editora, mas recebeu como resposta que era algo “muito politicamente correto” para se tratar. Se o jornalismo não estava a serviço de denunciar as opressões sofridas pelas mulheres – no caso de Nicole, em público e ao vivo e ainda assim sem interrupção nem questionamento –, estaria a serviço de que?
Jules então criou a iniciativa Chega de Fiu Fiu, um mapa colaborativo em que mulheres podem compartilhar experiências em que foram assediadas nas ruas. É possível acessar o mapa e ler incontáveis histórias, todas muito diferentes entre si, mas também muito parecidas porque reproduzem a mesma lógica de opressão. A importância desse tipo de iniciativa, além da visibilidade, é ajudar as mulheres a entenderem seu papel de vítima. Importante observar que se reconhecer vítima não é sinônimo de “mimimi” ou vitimização, como alguns podem sugerir.
Um dos objetivos de Jules, portanto, é tirar de baixo do tapete os assuntos que evitamos. Até porque a sujeira não desaparece, ela continua ali, apenas invisível.
No começo do Chega de Fiu Fiu, foi lançando um questionário online para entender melhor sobre as experiências de assédio verbal sofrido por mulheres. Em menos de duas semanas, mais de oito mil mulheres responderam e compartilharam suas histórias. A própria Jules chocou-se com essa realidade, que tirava do caminho a ideia de que as experiências de opressão poderiam ser individuais, algo que aconteceria apenas com umas poucas desafortunadas (talvez com roupas ditas “provocativas”). Por meio do questionário, foi possível descobrir que 90% das mulheres já haviam trocado de roupa antes de sair de casa com medo do assédio que poderiam sofrer.
Uma opressão tão sistemática começa a fazer parte do dia a dia. A sujeira debaixo do tapete, embora ninguém fale sobre, continua poluindo e afetando a vida das mulheres.
Ao começar a mostrar e denunciar os assédios sofridos por mulheres, Jules enfrentou pessoalmente a Lei de Watson: quando uma mulher tenta denunciar uma violência, ela sofre uma segunda violência. Em menos de uma semana, ela recebeu mais de mil comentários e e-mails ameaçando-a de estupro ou de morte. Essa onda de ódio deixou Jules muito deprimida. A vida online, afinal, é vida real: pessoas de verdade estavam atacando-a por denunciar assédios sofridos por tantas outras mulheres.
Mas há muitos trolls na internet (e, consequentemente, fora dela) que sugerem que essas histórias não são verdadeiras, que são invenções.
Ano passado, no Masterchef Kids, uma das participantes – de apenas 12 anos – tornou-se alvo comentários sexualizados de diversos homens no Twitter. Esses comentários sugeriam o desejo de relações sexuais com a menina. A partir deste caso, Jules compartilhou sua primeira experiência com assédio, aos 11 anos, e outras mulheres começaram a também contar suas primeiras experiências. Para centralizar os relatos, Jules criou a hashtag #MeuPrimeiroAssedio, que alcançou 82 mil tweets.
Mas qual é a importância de compartilhar essas histórias? Jules responde: falar é apenas o primeiro passo, mas guardamos esses demônios dentro de nós e os naturalizamos. Ela não sabia dessas histórias nem mesmo das amigas mais próximas, tinha vergonha de falar sobre isso. E assim, por meio da vergonha, essas histórias permaneciam guardadas.
Para que essas histórias não fiquem guardadas, Jules criou a Think Olga, uma plataforma de empoderamento feminino por meio de informação. Feito por mulheres para mulheres – embora seja mais do que desejável que homens também leiam e se informem. Afinal, somente entendendo e nomeando as opressões sofridas é que se torna possível enfrentá-las.
É o caso da prática de manterrupting, o hábito masculino de interromper e falar por cima de mulheres em espaços públicos, como se mulheres não pertencessem a esses espaços.
Mas o problema não é “apenas” falar por cima. Com frequência, sequer se fala com mulheres. Em matérias jornalísticas, mulheres representam cerca de 25% das fontes consultadas, inclusive em temas relacionados diretamente à vida das mulheres, como aborto. Para lidar com isso, o Think Olga lançou o Entreviste uma mulher, que já conta com mais de 100 mulheres que se encontram abertas e dispostas a falar sobre os mais diversos temas.
Quando o jornalismo fala de mulheres, muitas vezes o faz de forma equivocada. É o caso de uma matéria sobre o cantor Biel, que assediou uma jornalista. O título da matéria e todas as citações traziam a fala de Biel, dizendo que “ela destruiu minha carreira”, mas sem sequer considerar os efeitos do caso sobre as mulheres envolvidas. Para oferecer auxílio para que jornalistas enxerguem as violências que reproduzem em seu trabalho cotidiano, o Think Olga criou o Minimanual do Jornalismo Humanizado, com orientações para escrever sobre violência contra mulheres e pessoas com deficiência. Outros temas devem ser acrescentados futuramente.
Durante toda a sua fala, Jules marcou sua posição: mais do que simplesmente indicar o que, na sociedade, precisa de conserto, ela vem propondo caminhos para esses consertos. Reconhecer as opressões é essencial, sem a menor dúvida, mas criar modos de lidar com elas (e eventualmente eliminá-las) parece um caminho inteligente no enfrentamento das opressões cotidianas.