Este texto é um registro narrativo do evento Criando confiança na comunicação, promovido pelo Imagens e Vozes de Esperança (IVE) na ESPM dia 8 de setembro de 2016.
A palavra confiança vem de acreditar com firmeza. Firmeza, por sua vez, tem relação com fé. No atual contexto, em que a tecnologia desafia os modelos tradicionais de comunicação a se reinventarem, como o campo da comunicação pode manter ou recuperar a confiança das pessoas? Para discutir essa questão, o IVE reuniu a cofundadora do IVE Judy Rogers, a publicitária Christina Carvalho Pinto e o jornalista Herodoto Barbeiro.
Christina iniciou sua fala indicando que a evolução da tecnologia tem apontado para uma tendência de imaterialidade, de fluidez e desapego da matéria. A maior frota de táxis e a maior rede hoteleira do mundo são compostas por empresas que não detêm nenhum táxi e nenhum quarto de hotel. A lógica econômica que ainda sustenta muitas das empresas que temos em operação está mudando, forçando-as a se reinventar.
Com a comunicação, ocorre o mesmo processo. Os grandes veículos da mídia já não se constituem mais como um monolito, um monopólio capaz de escolher quais histórias serão colocadas em circulação e de que maneira. A grande mídia hoje é cada pessoa. Por meio das redes sociais e da tecnologia cada vez mais acessível, cada pessoa deixa de ser apenas receptora de informações e histórias e passa a ser também emissora, produzindo as narrativas que serão compartilhadas com suas redes e que podem ganhar proporções imensas.
O que os comunicadores profissionais podem fazer para continuar relevantes e, principalmente, para manter a confiança de seus espectadores e leitores? Christina oferece duas sugestões:
- contar histórias por inteiro, sem se restringir apenas à repetição de tragédias – numa crise em que 100 mil empresas fecharam, há muitas pessoas criando e inventando soluções para seus problemas;
- trazer a mágica de volta, evidenciando a possibilidade que todos temos de florescer novamente, de reencontrar o belo que, apesar de qualquer tristeza, continua presente.
Para Herodoto, a capacidade de perceber e compartilhar as histórias por completo depende de buscarmos uma clareza de mentalidade. Isso pode ser feito por meio da atenção plena (mindfulness), que nada mais é que uma forma de meditação, de estar presente e livre da instabilidade de uma mente arredia.
Quando tomados pela inconstância e efemeridade das ideias e sensações, muitas vezes agimos feito carneiros sendo guiados por forças externas. O efeito manada é um perigo quando a euforia dos compartilhamentos em redes sociais cresce e distribui informações falsas ou incompletas. É necessário clareza de pensamento para observarmos uma onda de incômodo e frustração surgindo e se perguntar: “isso é verdade?”.
Mas esse é o trabalho do comunicador: a confiança (em uma pessoa, instituição ou marca) se sustenta na possibilidade de continuarmos acreditando sem nos sentirmos enganados. Contudo, não cabe apenas aos “formadores de opinião” pensar criticamente sobre o que é ou deixa de ser verdade. Todos nós compartilhamos essa obrigação para com o espírito crítico na hora de formar nossas opiniões.
Quando Judy Rogers assumiu a palavra, começou desculpando-se por estar no Brasil e ser incapaz de se comunicar em português. A seguir, deu continuidade às falas de Christina e Herodoto sobre imaterialidade, considerando que algumas coisas são permanentes – que ninguém pode tirar de nós – enquanto outras são impermanentes – podemos perdê-las em crises, incêndios etc.
Uma mente estável é pré-requisito para sermos capazes de separar o que é permanente e o que não é. Quando sentamos em silêncio, nos tornamos observadores perspicazes. Com a mente calma, vemos quando o rei está nu. Se estamos com a mente agitada, aceitaremos os discursos de “nova normalidade” – que pode ser uma política baseada no medo e na ignorância, como proposta por Donald Trump.
Há dois movimentos distintos ao mesmo tempo. De um lado, uma energia descendente das coisas que estão falhando, quebrando, deixando de cumprir seus propósitos. De outro lado, uma energia ascendente, construtiva, criativa, não tão fácil de perceber, focada no que está emergindo de novo – muitas vezes em resposta à falência dos modelos anteriores.
Esses movimentos e a necessidade de uma observação cristalina se impõem como desafios. Se temos objetivos pessoais, temos que ser claros e abertos sobre isso. Todo mundo tem uma posição, um sistema de crenças em ação quando avaliamos o que quer que seja. O que não podemos é fingir que esse sistema de crenças não existe e que somos isentos, objetivos, imparciais. Quando tentamos vender essa imagem, abrimos mão da confiança de quem percebe que não há comunicador isento, que toda “verdade” nasce de um ponto de vista.
Neste sentido, Christina sugeriu aos jornais atuais que acrescentem, nos créditos, a seguinte mensagem: “o que esse programa acabou de exibir é nossa opinião, não a verdade. Faça a sua própria reflexão sobre o que é verdade”.
Em resposta a uma pergunta sobre como começar a mudança, Judy foi taxativa: todos nós temos nossas comunidades. Quando almoçamos com colegas, quando conversamos com amigos, podemos mostrar o quanto a meditação tem sido importante em nossas vidas. É assim, pelo exemplo, que podemos fomentar a realidade que desejamos para o mundo. Quem já confia em nós terá mais facilidade para se abrir a essa possibilidade.
Às vezes, a abertura não vem de alguém que já confiamos, mas de uma pergunta que nos desconcerta. Christina contou sobre um evento em que falava sobre valores positivos na publicidade. Ela foi questionada por um homem na plateia: “na próxima campanha da Coca-Cola, você vai dizer que Coca-Cola é amor?”. Afetada pela questão, ela foi investigar a fórmula do refrigerante e descobriu que é a bebida mais ácida existente. Nosso sangue, em contrapartida, é alcalino. Nossa imunidade cai com o aumento da acidez. Coca-Cola é amor?
Precisamos entender a quem nós servimos.
E também a que. Sobre a tendência sensacionalista do jornalismo, Herodoto falou sobre o interesse humano pelo sensacional, aquilo que encanta e motiva, que nos toca lá no fundo. O sensacionalismo é uma perversão desse interesse, focado apenas em sentimentos ruins e acontecimentos devastadores.
Após a conversa com Christina, Herodoto e Judy, foi a vez de Tony Marlon e Paula Kim apresentarem seus projetos transformadores.
Tony falou sobre a Escola de Notícias, uma iniciativa concentrada em oferecer técnica e reflexão para jovens das periferias – no plural, porque periferia não é uma só – produzirem conteúdo sobre suas realidades. Cansados de serem retratados por pessoas e veículos de fora como carentes, colocaram em disputa a palavra carente.
A crise de que tratamos durante o evento não é tanto tecnológica quanto de narrativa: as pessoas não têm se identificado com as narrativas compartilhadas com a grande e tradicional mídia. Por isso, o movimento de assumir para si a função de contadores de histórias.
Algo muito bonito sobre a Escola de Notícias: ela tem data para acabar. Para evitar a lógica colonialista da pessoa de fora que veio para “salvar” uma comunidade necessitada, a Escola tem prazo de dez anos. Ao final desse período, ela só vai continuar se a própria comunidade tomá-la nas mãos e assumir esse trabalho – se isso fizer sentido. Até porque o propósito de qualquer iniciativa social deveria ser desaparecer.
Paula contou sua experiência com a criação do Sobre nossa visão distorcida, uma página na internet que tem servido de ponto de encontro e troca de experiências para pessoas com transtornos alimentares. De seu relato, aprendemos o quanto todo projeto que colocamos no mundo parte de uma questão que muito nos importa.
Para finalizar o evento, Judy Rogers voltou ao palco para falar sobre o poder de narrativas restaurativas. Há duas posturas necessárias dentro da prática da narrativa restaurativa, que recupere a força e a vida:
- nós temos que contar as notícias ruins – se não o fizermos, as pessoas irão atrás, descobrirão por conta própria e perderão a confiança em nós;
- mas em vez de recontar as notícias ruins de novo e de novo, devemos nos mover em direção àquilo que dá mais vida, ou seja, que mostre como as pessoas se reorganizam, se reinventam, se reerguem.
É deste modo, intencionalmente trabalhando a serviço do que promove mais qualidade de vida por mais tempo, cultivando uma percepção clara e uma mente calma, que poderemos criar confiança no campo da comunicação.
Eu trabalho fazendo registros narrativos de eventos, experiências e cursos. Caso tenha interesse em me contratar para fazer uma colheita narrativa dos aprendizados no seu evento, experiência ou curso, basta entrar em contato comigo.