A arte de pedir, a cauda longa e o fim do (meu) individualismo

“Nossa, você conseguiu fazer tudo isso sem pedir ajuda a ninguém?”. Essa pergunta, disfarçada de elogio, esconde uma triste verdade.

A nossa cultura considera o esforço individual como sendo superior ao coletivo. Realizar algo sozinho é melhor visto do que compartilhar desafios e buscar soluções por meio do diálogo com outras pessoas. É esse o modelo de liderança e heroísmo que nos tem sido ensinado desde sempre: o sujeito acima dos meros mortais, aquele capaz de propor soluções e caminhos graças à sua experiência ou habilidade superior.

O Super Homem é nosso modelo de liderança.

Nesse cenário, pedir ajuda é algo ruim. Compartilhar desafios e procurar pessoas para resolvê-los lado a lado é, no mínimo, entendido como atestado de incapacidade ou dependência, como se pedir ajuda significasse que estamos de alguma maneira falhando em nossas missões como seres humanos.

Participamos de uma cultura bastante cruel e individualista (sobre a qual escrevi em algumas oportunidades, como aqui e aqui) que nos cobra uma necessidade de grandeza. Só consideramos positivo aquilo que atinge o máximo possível de pessoas e que se destaca entre os esforços como o melhor.

Isso acontece porque desde pequeninos vamos aprendendo que devemos ser os melhores entre todos, aqueles que se destacam nas notas, nos esportes, nos relacionamentos, nas contas bancárias, em tudo.

Não há espaço para não ser o melhor e não há espaço para duas pessoas serem as melhores ao mesmo tempo.

A minha pergunta, que fundamenta este texto inteiro, é: por que resolver as coisas sozinhos? Tenho refletido sobre isso desde que assisti a um vídeo da Amanda Palmer no TED, no qual ela explica a maneira como leva a sua arte.

A arte de Amanda Palmer

Ela conta várias coisas, como o fato de que já trabalhou como estátua humana na rua, retribuindo doações com um olhar profundo e um agradecimento sincero e promovendo um tipo de contato que falta na vida de muitos passantes. Além disso, nos shows que faz com suas bandas, Amanda geralmente se hospeda na casa de fãs, recebe comida e estabelece relações significativas com as pessoas. É possível baixar suas músicas gratuitamente em seu site. A escolha de pagar ou não, e quanto, é das pessoas que farão o download do material.

Essa é uma proposta revolucionária (um exemplo parecido vem do Radiohead).

Nem todo mundo tem dinheiro disponível para apreciar suas músicas, mas talvez gostassem ouvi-las mesmo assim. Amanda estimula a pirataria e a distribuição livre do conteúdo que produz. Não devemos nos equivocar, contudo: o que ela faz é fruto de trabalho, é criação artística, é um processo que consome tempo e que deriva da experiência dela como artista.

Será que, agindo assim, ela está desvalorizando o seu trabalho?

Em uma festa, Amanda ofereceu-se nua para que fãs escrevessem em seu corpo.
Em uma festa, Amanda ofereceu-se nua para que fãs escrevessem em seu corpo.

O que Amanda faz não é desvalorizar o seu trabalho, mas sim abri-lo para todas as pessoas. Ela não coloca um preço fixo sobre um produto específico. O que ela faz é pedir aos seus fãs que contribuam com o seu trabalho.

Um caminho arriscado, talvez?

De um ponto de vista economicamente tradicional, pode ser. Contudo, o que Amanda propõe não é uma troca meramente econômica, mas sim uma relação, uma troca de afetos.

Em certo ponto de sua fala no TED, Amanda diz que se perguntou: é justo se hospedar na casa das pessoas, comer sua comida e receber o dinheiro de quem se dispõe a pagar? Ela responde: sim, é, pois ela está oferecendo algo em troca à medida que sua arte toca a vida das outras pessoas.

O que ela propõe é ainda mais possível hoje em dia, graças à internet. Para entendermos isso, olhemos rapidamente a teoria da cauda longa.

A tal da cauda longa

A internet mudou a maneira como nos relacionamos com a produção de conteúdos, informações e projetos artísticos. O mais evidente dos seus efeitos foi o deslocamento do poder de produção de conteúdo da mão de poucas pessoas e instituições para uma pluralidade incontável de criadores espalhados pelo mundo.

Historicamente, os meios de produção sempre foram escassos em comparação à quantidade de consumidores de conteúdo. A cultura humana sofreu um grande salto com a criação da prensa móvel, que permitia a impressão seriada de livros. Até então, livros eram produzidos à mão, um processo artesanal lento e que limitava o acesso ao conhecimento escrito a poucas bibliotecas inacessíveis às massas. O tempo cuidou de baratear a produção dos livros, aumentando sua circulação, e logo outros meios de difusão de conhecimento surgiram, como o rádio, o cinema e a televisão.

Todos eles, porém, apresentavam características semelhantes: alto custo de produção, que, portanto, estava concentrada nas mãos de poucos. Em termos econômicos, isso significa que valeria mais a pena vender um produto altamente rentável para milhões de pessoas do que milhões de pequenos produtos para indivíduos ou pequenos grupos. Produzir um item em série é mais barato do que produzir milhões de pequenos itens individualmente.

cauda longa

A ideia da cauda longa é a seguinte: a cabeça do dinossauro corresponde à produção em massa, mais genérica, que é produzida em larga escala. A série Harry Potter é um exemplo, impresso à exaustão em vários idiomas e um sucesso inegável de público. A cauda, por outro lado, representa todos os pequenos escritores que por anos tiveram poucos leitores, seja por escreverem materiais específicos demais (que não alcançaram um público mais amplo), seja por não conseguirem entrar no restrito universo das editoras comerciais.

O que a internet fez com esse cenário?

A internet tornou possível que até mesmo a pontinha do rabo do dinossauro disponibilizasse seu material em um site a um custo baixíssimo (e que fica cada vez mais baixo, ampliando o acesso e a possibilidade de produção). Conforme os anos passam, vemos revoluções neste sentido, já que pessoas antes silenciadas em suas posições distantes dos grandes meios de produção começaram a fazer vídeos para o YouTube ou escrever em blogs.

Na internet, mesmo lá na ponta da cauda, eu posso encontrar leitores. Posso escrever fanfictions de robôs gigantes apaixonados por lulas que brilham ao sol e ainda assim encontrar as outras únicas sete pessoas no universo que curtem isso. E estabelecer uma relação significativa com elas, se assim quiser.

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Em defesa do afeto

Como escritor homossexual, eu vou e volto quanto à seguinte questão: deve existir uma literatura LGBT? Quem defende que não, diz que a literatura deve ser o mais universal possível, o que iria além de um “selo” como esse. Quem defende que sim, argumenta que a arte é política e deve encontrar espaço para representar pessoas das mais diversas origens e vivências.

O argumento dos primeiros é: a arte deve estar na cabeça do dinossauro.

O argumento dos segundos: a arte deve estar onde estiver, no dinossauro, mesmo que lá no meio da cauda.

Toda a nossa cultura ocidental está orientada pela cabeça do dinossauro; esse é o único modelo de sucesso sobre o qual temos referência. Devemos ser os melhores, os mais intensos, aqueles que alcançam mais pessoas. A arte deve ser universal e perdurar pelo máximo de tempo, se possível até o infinito.

Só que não precisa ser assim.

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“Eu sempre consigo fazer você sorrir”

Após oito anos como blogueiro, aprendi algumas coisas sobre o ato de escrever. A primeira delas é sobre a minha motivação: eu escrevo porque através das letras posso afetar as pessoas. Se tem uma coisa que me dá vontade de continuar escrevendo (e vivendo, aliás), é a possibilidade de entrar em contato com pessoas em diversos lugares e propor algum tipo de conexão.

Eu sei que isso acontece, pois aqui e ali, nesses oito anos, pessoas entraram em contato comigo porque se sentiram tocadas pela minha escrita. Isso é mágico, porque dá sentido ao meu trabalho como escritor. É mágico porque significa que não estou escrevendo para o nada, estou escrevendo para pessoas reais, com sentimentos e desejos.

Escrever é uma forma de contato com aqueles que me leem.

O que eu tenho a pedir

Vim a São Paulo para viver como escritor: a história desta trajetória está sendo escrita aqui neste site texto após texto. Eu cheguei aqui de olho na cabeça do dinossauro, pensando em São Paulo como a cidade das oportunidades, das grandes editoras, dos escritores estabelecidos, dos grandes meios de comunicação.

Desde que cheguei, entretanto, fui encontrando pistas de que talvez o caminho não seja por aí. Tenho três livros publicados, mas eles têm uma deficiência em relação ao que escrevo na internet:  não propiciam o contato entre os leitores e mim. Excetuando as pessoas que leram meus contos sentados na minha frente (sim, eu faço essa maldade, às vezes), não tive pouquíssimo retorno do que pensaram ou deixaram de pensar sobre ou a partir do que escrevi.

Eu não quero isso.

Se a cabeça do dinossauro significa distância, não é o que eu quero. Eu anseio por proximidade, por afeto. Por isso, decidi começar a disponibilizar a minha produção artística abertamente aqui no blog. Conforme eu escrever novos contos, eles serão disponibilizados na categoria ficção. De graça.

Amanda Palmer e o crowdfunding
Amanda Palmer e o crowdfunding

“Ah, mas tu faz isso porque não é um grande escritor”, alguém pode dizer (alguém chato, né?).

Não, eu faço isso porque acredito que posso tocar pessoas com o que escrevo, seja ficção ou não. Se eu quero ser publicado em livro? Quero muito. Contudo, não acho que o modelo de publicação que temos atualmente é o melhor e não tenho dinheiro para entrar no jogo com os grandes. Nem preciso. Os leitores que vierem serão os leitores certos. Os que voltarem, se depender de mim, tornar-se-ão amigos.

Esse é o meu projeto atual: abrir o meu trabalho para o mundo gratuitamente.

Inspirado pela Amanda Palmer, eu peço: quem puder e sentir que faz sentido, por gentileza colabore financeiramente com o meu trabalho como escritor. Qualquer valor já será uma ajuda mais do que desejável. Não tem dinheiro ou não pode ajudar agora? Sem problemas, seja igualmente bem-vindo.

Contribuindo ou não, converse comigo! Deixe um comentário, diga o que achou do texto, o que pode melhorar, o que está ruim, do que discorda… Seja gentil, mas acima de tudo deixe um pedacinho de si aqui no site (e na minha vida)!

Eu não quero fazer nada disso sozinho. 🙂